Wednesday, June 9, 2010

As Lágrimas Estão Todas na Garganta do Mar

Isabel Mendes Ferreira - As Lágrimas Estão Todas na Garganta do Mar
É minha firme opinião, que a Isabel Mendes Ferreira, para além de uma excelente artista plástica - representada em várias colecções particulares, na Europa e nas américas, é a nossa melhor Poeta contemporânea. Já o disse, redisse, escrevi e rescrevi, que “ler Isabel Mendes Ferreira é como assistir ao descerrar de auroras, cantando e reinventado palavras de diferentes paladares por detrás dos fiapos da memória e da respiração das manhãs”, e continuarei a dizer e a escrever o mesmo, enquanto não aparecer no actual panorama literário português, alguém que altere esta convicção, formada desde o dia em que a descobri e de que não esqueço a forte impressão que senti ao lê-la: uma pedrada na “modorra” instalada.

Ninguém actualmente escreve como a Isabel Mendes Ferreira: nem com a profundidade nem com o estilo, nem com a qualidade que lhe advém do domínio absoluto da escrita e de um jogo de palavras soberbo.

Como se pode ler no posfácio, “O sentido ambíguo da sua escrita, converte-se no que o excede e onde ser o mesmo é ser outro de si (é outrar-se, como diz Fernando Pessoa), o que apela à desconstrução do discurso tradicional”.

Para mim, é pois, extremamente gratificante falar do novo livro de uma escritora e poeta, despojada de falsas crenças da unidade da consciência identitativa, de uma escritora que transporta os verbos que ainda não estão corroídos, pervertidos, subvertidos, gastos, e que com ela voltam fantásticos, imortais, castos e vestidos de denso sentir.

Este, o seu décimo terceiro, é um livro que me fascina, aprecio-lhe o cheiro das areias do deserto e a cor do cair da noite quantas vezes ruborizada de pudor e aureolada de luminosidade divina, um livro para ler e reler, uma instância de retemperação. Um livro com chancela da Arcádia, onde voltaremos amiúde e que está a partir de hoje à venda em todas as livrarias Babel.

"As Lágrimas Estão Todas na Garganta do Mar", integra uma novíssima colecção de poesia, iniciada por David Mourão Ferreira e onde é o terceiro título.

Por: José Pires F

Sunday, March 21, 2010

O engate

é uma ameaça encontrar-te à esquina das ruas
rente aos grandes cinemas do mar
como se fosses o espelho côncavo de feira
onde posso mergulhar e renegar-me

sim
se olhares o céu lúgubre deste fim de século
se fizeres um movimento de farol com o cigarro
eu - que vou a passar - tudo verei
mas nada será meu
porque não se pode falar com o espectro mudo
do engate - nem o desejo se levantará
para seduzir o corpo daquele que se ausentou

mesmo assim conheço
todas as esquinas da imunda cidade que amo
mesmo assim sofro de insónias - imito o noitibó
o bêbado louco
gesticulo como aquele que já não sou e
outro não serei

mantenho-me de pé e fumo
dentro deste túmulo de incertezas onde
nos encostámos de mãos enlaçadas à espera
que uma qualquer cesura nos agonie e sejamos
obrigados a vender o corpo já usado
aos insuspeitos violadores de poemas

Al Berto

Monday, January 25, 2010

Aurora



aspiro aurora que conduz a
doces deambulações
pelo mundo dos afectos
em manhãs tardes e suaves entardeceres
até ao ocaso final


matinal é o desejo
mas não a sua natureza intrínseca
pois essa é pertença de todos os tempos
percorrer esse cosmos
com o denodo de estóicos espíritos
todavia abertos
plenos de vida
cheios de si e dos outros
que não temem
muito menos aceitam
os dilapidadores éditos de terceiros
ou de recônditos lugares interiores


tentar o amor entre elementos contrários
arrostando na água amar o fogo
sim ousar o impossível
sim ousar falhar
sim ousar tentar ainda que perecendo na tentativa
lutar contra os quixotescos gigantes
que toldam a existência de papel quiçá
para por fim constatar
que mais não eram do que simples moinhos de vento


existir
no fundo somente viver
assentindo a concessão dos acasos
que compomos na busca do outro
de nós do outro em nós e de nós no outro
então talvez um vetusto lúgubre ocaso
dê lugar a uma novel aurora de veludo


Rui Amaral Mendes
(Na luz do crepúsculo)


Rui Amaral Mendes, aqui e no Frágil

Saturday, January 9, 2010

Postais do Tempo - Construção



[All photographs © by M.João: all rights reserved]
Maria Bethânia - Casinha Branca   (Veja Vídeo)

Da vida, principalmente.
Tenta-se que vá fazendo o seu curso caótico, enquanto suscita lembranças.
De preferência boas.
Quem gostaria de ser classificado como um desajeitado ou um rezingão?


Ãh?… nada disso importa? …
Só diz tal coisa quem não atura memórias difíceis.


Conheço quem gostaria de ser recordado como um pequeno Gandi, outros como pequenos Freud, como Madres Teresa, Madames Curie, Padeiras de Aljubarrota.
Outros prefeririam ter sido Mata Hari, Callas, Picasso, Mozart ou Baudelaire.
Mas há quem apenas deseje deixar um rasto de Zé Ninguém.


Construção por construção, escolheria deixá-la em dois passarinhos enfeitando o pátio de uma “Casinha branca”.


Maria João


Thursday, December 31, 2009

O último dia



O último dia do ano
Não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
E novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
Farás viagens e tantas celebrações
De aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia
E coral,

Que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
Os irreparáveis uivos
Do lobo, na solidão.


O último dia do tempo
Não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
Onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
Uma mulher e seu pé,
Um corpo e sua memória,
Um olho e seu brilho,
Uma voz e seu eco.
E quem sabe até se Deus…


Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.


Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa, já se expirou, outras espreitam a morte,
Mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
E de copo na mão
Esperas amanhecer.


O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
O recurso da bola colorida,
O recurso de Kant e da poesia,
Todos eles… e nenhum resolve.


Surge a manhã de um novo ano.


As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
Lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.


Carlos Drummond de Andrade


Rui Amaral Mendes, aqui e no Frágil

Postais do Tempo - Éter



[All photographs © by M.João e A.C.: all rights reserved]
Jeff Buckley - Hallelujah  (Veja Vídeo)

Que gritos são estes? Que fazemos aqui?
Delicados ou agressivos, a que vimos quando entramos neste vazio?
Blogosfera, mundo virtual, éter, chamam-lhe alguns.
Brados de “Aleluia”, diria eu.


Os blogues são a coisa menos delicada que conheço.
Ainda que íntimos, podem revelar uma perenidade brutal.
Da pobreza mais envergonhada, à mais abjecta prosápia,
da catarse mais poética, à mais descarada jactância,
são tudo o que um texto ilustrado sabe fazer.
Num colorido menos puro do que o verde cósmico,
constroem exercícios espirituais, críticas e ironias,
gerando ondas gravitacionais à escala humana.


Como todos sabem, delicados, mesmo, são os Dim Sum,
uma poeira de estrelas tão inofensiva, na sua cozedura a vapor.
Com votos de bom 2010, eis um postal menos aprimorado do que eles.
Na imagem há restos de gomas nos dentes, mas vamos já lavá-los.


Maria João


Sunday, December 27, 2009

Uma visão...




Porquê reclinar-se, interrogar-se? Porquê eu e todos adormecidos?
Que sombrio crespúsculo - escória flutuando sobre as águas!
Quem são esses que como morcegos e cães nocturnos estão à espreita no capitólio?
Que Presidência imunda! (Oh, tórridos sóis do Sul! Oh, gelos árcticos do Norte!)
Serão esses os verdadeiros congressistas? Serão esses os grandes juízes? É esse o Presidente?
Então vou dormir um pouco, pois vejo que estes Estados dormem, por alguma razão;
(Entre densas sombras, com o rugido do trovão todos acordaremos em devido tempo,
O Sul, o Norte, o Este, o Oeste, o interior e o litoral, com certeza que todos acordaremos.)


Walt Whitman


Rui Amaral Mendes, aqui e no Frágil